Translate

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Danny Marks é indicado para prêmio Kindle de Literatura 2016


Meu livro Sob o Signo de Tanatos – Retratos de uma Mente Mistica, foi indicado para participação no prêmio Kindle de Literatura 2016. Não perca tempo, faça a sua avaliação junto com os especialistas da área.

Sinopse
Baseado em fatos verídicos acompanha em primeira pessoa a iniciação de um jovem nos caminhos da Magia. As difíceis escolhas que cobrarão seu preço e moldarão o caráter; as consequências de seus atos impensados diante da responsabilidade exigida.
Não é a jornada de um herói, mas um retrato particular onde grandes escolhas, que podem mudar o futuro pessoal e de todos a sua volta, são exigidas em uma época em que não se tem certezas, apenas grandes dúvidas. Mas o Universo não oferece escolhas simples, cada um terá que conquistar o seu lugar de direito, ou morrer tentando fazer o que acredita ser o certo, enquanto acreditar.
Os segredos do Universo revelados por uma Criança das Estrelas, alguém como você.

Detalhes do produto
Formato: eBook Kindle
Tamanho do arquivo: 2347 KB
Número de páginas: 115 páginas
Vendido por: Amazon Servicos de Varejo do Brasil Ltda
Idioma: Português
ASIN: B01LWXJEDO
Configuração de fonte: Habilitado 
Preço eBook Kindle R$ 9,76


Baixe o aplicativo Kindle gratuitamente e leia em qualquer dispositivo

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Sobre o que você escreve?


Recentemente fui ao lançamento do mais recente livro de uma querida amiga, colega de Letras, e me perguntaram sobre o que escrevo. É um daqueles momentos em que fico sem palavras.
Como responder a isso de forma verdadeira, sem parecer pedante, incompetente, mentiroso? Sem virar verborragia, sem tergiversar, sem parecer técnico demais ou superficial demais? Complicado falar sobre isso, da mesma forma que é complicado se definir como pessoa em poucas palavras, até porque, muitas vezes, nos reinventamos constantemente.
          Costumo dizer que escrevo sobre pessoas, o estilo quem define é a ideia que não consegui deixar ir. Quem por acaso tenha se interessado em ler os meus textos vão poder verificar que isso é verdade. Normalmente trabalho com o conceito de esperança, mesmo nas distopias. Trabalho com o conceito de pessoa, mesmo quando os personagens são animais, robôs, seres fantásticos, forças da natureza ou, até mesmo, pessoas comuns. 
          Já escrevi literatura de terror/horror, de FC – recentemente me aventurei no steampunk, um absurdo –, de filosofia, literatura policial, romance, fantasia, psicologia, literatura fantástica e o que mais me pediram ou me deu vontade de tentar fazer. Algumas vezes me vi escrevendo textos técnicos sobre diversas temáticas, resenhas, monografias, teses, o que foi necessário ou solicitado. Trabalhei como revisor, organizador e editor, ensinei a fazer e aprendi fazendo.
          Mia Couto diz que gosta de dar voz a pessoas que não teriam voz de outra forma, Marcelino Freire diz que escreve sobre o que o incomoda. Eu faço um pouco dos dois, também.
Nos meus textos estão todos os autores que li e gostei, além de todos os autores que li e detestei, estão todas as pessoas que conheci e todas que gostaria de encontrar algum dia. Estão todos os traumas e as esperanças, todos os demônios e anjos, vilões ou heróis, reais ou imaginários, que de alguma forma fizeram parte da minha vida.
          Como definir o meu estilo específico de escrita se não me preocupo com ele até que seja necessário escrever uma ideia? Tem aquela que fica melhor no estilo de literatura fantástica, a outra que fica bem em uma Ficção Científica, outra que só se justifica no horror/terror, tem a que exige um policial, outra que é a cara de uma fábula, ou se realiza bem em um conto ou crônica. Tem as que são mais complexas e simplesmente obrigam um espaço maior para se desdobrarem, viram noveletas, romances. 
          Como falar que esse passeio entre estilos e formatos não é uma coisa tranquila, um modelo que gosto de seguir, mas uma necessidade que me obriga a gastar horas e valores que muitas vezes fazem falta em outras coisas? Como dizer que amo escrever, mas que há momentos que desejaria que uma ideia apenas desaparecesse da minha mente e fosse procurar outro para a realizar, que preciso dormir e ela não me deixa, que não quero falar sobre isso? Como explicar que as vezes é vicio, as vezes paixão; que as vezes é sedução e em outras é tormento? Quem em sã consciência dificultaria as coisas que gosta de fazer? 
          Sim, é um problema sério não poder ser definido de forma simples. Como vou apresentar aquele romance que tem vampiros, inteligências artificiais, humanos, transumanos, lobisomens, nano robôs, demônios ninjas, competindo em uma elaborada teoria da conspiração para comandar o futuro da humanidade em uma verossímil trama filosófica que poderia estar acontecendo em algum futuro distópico alternativo neste exato momento? Em que gênero isso se encaixa? Como formar leitores quando não se pode dizer qual vai ser o tema e o estilo do próximo livro ou texto? Quando, literalmente, qualquer coisa pode acontecer?
          Sem falar que é preciso conhecer mais profundamente diversos estilos para poder transitar entre eles, é preciso entender os mecanismos da narrativa para que não vire uma colcha de retalhos mal elaborada e aberrante. Realmente não é uma coisa simples saltar de um modelo descritivo para um modelo dialógico, ou de traçar um modelo com diversos núcleos de personagens com influencias diretas e indiretas, com tramas paralelas e trama central, multiplots e perspectiva diretiva. Uma trama é tão mais bela quanto mais fios consegue trabalhar na composição da imagem sem que se perca os entroncamentos certos, as evoluções necessárias, a perspectiva singular e geral, mas pode exigir apenas uma linha direta e simples ou ficará horrível e sem sentido. 
          Isso exige um respeito e conhecimento profundo da técnica que se pretende usar, que jamais deve vazar arrogantemente para o texto, que deve sempre ser compreendido pelo leitor, apesar das enormes complexidades que desvela, permitindo uma leitura superficial e ágil ou uma leitura aprofundada, com diversas chaves de leitura e links bem elaborados para ampliar a experiência da leitura. A chamada literatura em camadas interpretativas que me fascinam, mas que exigem tudo e mais um pouco de quem se atreve a tentar fazer algo do tipo.
          Há tempos defini as minhas atividades em termos de possibilidades, resumindo tudo em uma frase simples e emblemática que serviu como uma bússola para os que chegassem e para os que permanecessem: “Fazemos o possível hoje e o impossível amanhã”.
          Então como definir de forma simples e complexa a minha literatura, o meu estilo pessoal? Creio que a melhor forma de fazer isso em uma frase é dizer: “Escrevo aquilo que gostaria de ter lido, mas não haviam escrito, ainda”.

          Até que alguma forma melhor me ocorra, será essa a forma que vou usar para definir o que escrevo. Espero que isso facilite para os que tentarem entender e se interessarem em serem meus leitores, todos os outros não importam tanto assim.

Danny Marks

sábado, 22 de outubro de 2016

Dez Reais para Zé Bigode

       Quando se mora em uma cidade turística litorânea, acostuma-se com a sazonalidade populacional que acomete determinadas épocas como chuvas de verão. Costumam vir ruidosas, rápidas, transbordantes, atrapalhando todos os planos e, depois, quando se vão, deixam muito lixo e bagunça expostos.
          Claro que para determinados tipos de pessoas, como políticos – que lucram com os impostos e popularidade, comerciantes – que lucram com a venda de produtos para pessoas que não estão preocupados com o dinheiro, e escritores – que desconhecem a palavra lucro, mas acabam conhecendo novos personagens –, sempre há algo de bom nesse fluxo humano.
          Foi assim que conheci um personagem urbano inusitado, não há palavra que o descreva melhor, chamado popularmente de Zé Bigode. Não que seja esse o nome real, se é que ainda lembra de ter algum, seja pela embriaguez, seja pela demência leve que demonstra, seja porque é difícil para uma pessoa em “situação de rua” – sempre me intrigou esse eufemismo moderno para a arcaica palavra mendigo – manter uma identidade. Situação de rua na minha opinião deveria ser algo como assalto, manifestação, essas coisas, mas enfim, não vamos fugir ao tema.
          Um mendigo de bigode não é algo inusitado, a menos que os mantenha enrijecidos e curvados à Salvador Dali, quase sem barba – me pergunto onde consegue laminas para a fazer. Mas essa particularidade que lhe dá nome só é vista por último, depois que se repara nos trajes: um paletó de terno a cobrir nada além da pele curtida pelo tempo em seu duplo sentido e pelos brancos no peito, a servir de leito para a gravata, uma calça que já viu tempos melhores – com um corte lateral – e um pé de sapato – o outro leva uma garrafa pet amarrada com trapos que podem ter sido a camisa ausente.
          Zé Bigode é aquela espécie de turista que não agrada políticos ou comerciantes, que tentam a todo custo mantê-lo longe, mas que de alguma forma acaba se tornando mais uma exótica parte do espetáculo público, depois que se vence o impacto inicial. Sempre limpo, apesar de sua situação restritiva, caminhando pelo calçadão com ar majestoso como a verificar se os jardins e os equipamentos de seu lar de verão estão em bom estado, escolhe ao acaso alguém e lhe pede, sem qualquer apresentação prévia:
          — Dez reais!
          Não pede nada diferente disso, seja valor ou outras coisas. Sempre “dez reais”. Também não aceita que alguém que não tenha sido solicitado lhe ofereça donativos, apenas a pessoa – que pode até se tornar intermediário na transação – pode contempla-lo com qualquer valor, até mesmo os dez reais solicitados.
          Quando alguém o faz solta, em um tom de voz que não admite questionamentos, alguma de suas frases emblemáticas que, junto com as vestes e o bigode, o tornam tão popular. Feito o seu espetáculo retira-se como se nada houvesse interrompido o seu passeio, deixando apenas o som do mar e o silêncio abismado das pessoas.
          Claro que para um escritor ser escolhido por uma figura assim, inusitada, é como encontrar um dos personagens refugiados da ficção na curva de uma esquina que se vira de forma automática. Mas como não adianta nada tentar impor à Zé Bigode a sua presença, que será ignorada completamente, resta apenas aguardar que a sua loucura seja identificada e atraia a atenção. Por isso sempre que Zé Bigode está na cidade ando com dez reais no bolso, feito moedas para o barqueiro.
          E quando menos se espera, coisas acontecem. Projetando um raio de luz sobre as divagações em um banco de jardim público, chega a voz imperativa que o coloca no centro de um palco improvisado, no momento em que todos os roteiros possíveis estão descansando em algum lugar distante.
          — Dez reais!
          Rapidamente se forma um pequeno público a observar o estranho, talvez um turista que não conhece o costume. Diversos se preparam para fornecer suprimentos para o estranho, apenas para poder participar como coadjuvantes desse espetáculo popular sem hora marcada.
          Saco da bolsa, onde carrego a leitura do momento, a oferenda exigida pelo arauto dos novos tempos e tiro dos fones a trilha sonora que sempre me acompanha, para dar vazão a ansiedade na audição do vaticínio do oráculo moderno. Ele recolhe rápido, sem olhar, o valor ofertado que é displicentemente jogado no bolso esquerdo e proclama:
          — Fantasmas pertencem ao passado, só espíritos habitam o futuro.
          Comungo, provavelmente com o pequeno público que poderia até aplaudir se não estivessem tão ou mais aturdidos que eu, com as palavras. Vai-se o momento, vai-se Zé Bigode, vão os dez reais, vão os expectadores; cada qual pegando seu destino em direções opostas preenchidos por sentidos, fico sozinho com palavras e percepções.
          Reflito se as pessoas terão entendido o que disse aquele arauto do submundo, se cheguei a alcança-las em sua profundidade. Caronte deve estar a sorrir sob o capuz que lhe é peculiar. Olho para o horizonte e lá está a conversar animado com flores do canteiro, ouvintes cativas que nada lhe devem, antes de descer a rampa que conduz para o mar. Não o vi desde então, ainda calam em mim as palavras que se justificaram pelo valor dado, e mais.
          Teria Zaratrusta abandonado sua caverna e, rindo-se do escritor que tenta ver o mundo com olhos críticos de esperança, atira-lhe ao rosto realidades tantas vezes vivenciadas e não percebidas? Ao passado pertencem os fantasmas, só aos espíritos permite-se almejar o futuro. Poderia facilmente escrever uma tese, artigos, textos e peças teatrais a partir desse mote, mas logo sou invadido por percepção amarga que rouba o ímpeto.
          Jamais voltarei a ver Zé Bigode, ouvir sua louca sabedoria. Terá se tornado fantasma que permanecerá no passado, zombando do futuro e seus espíritos imaturos. Não podendo dividir direitos autorais com um fantasma, resta-me apenas o registro que, talvez, avise os espíritos de que há caminhos tortos no rosto da realidade – que nos assombra com sua síntese, e que se vai sem ligar para o que fazemos com o que nos deixa.

Só valemos dez reais de sua atenção, e nada mais.

Danny Marks

domingo, 16 de outubro de 2016

Qual é a sua Narrativa?

            Você já deve ter ouvido essa história em algum outro momento, mas não exatamente desta forma. Calma, não perdeu o início do texto, é assim mesmo, a questão está em que as narrativas raramente são totalmente originais, isso porque desde tempo pré-históricos elas são utilizadas – fazem parte de nossa trajetória civilizatória – e fica difícil, depois de tanto tempo, criar coisas novas.
            Um outro fato interessante é que usamos narrativas para praticamente tudo, desde ensinar valores morais que sejam úteis a sociedade, até comandar exércitos e seguidores contra um determinado inimigo. As possibilidades de uso das Narrativas são infinitas e a cada dia descobre-se mais modelos e usos que antes não haviam sido investigados, embora as mais famosas sejam no meio artístico, como expressão de sentimentos e concepções, retratando justamente as sociedades que ajudaram a criar e a desenvolver.
            Mas o que é uma Narrativa afinal? Fugindo de todos os tecnicismos possíveis poderia definir a narrativa como a exposição sequencial de fatos – reais ou imaginários – sob um viés interpretativo que possui intencionalidades, expressas ou não, nos conteúdos apresentados de forma a criar uma perspectiva parcial orientada. Ainda muito complicado? Ok, vamos fugir um pouco mais das questões técnicas. Uma Narrativa é uma forma de alinhavar fatos reais ou imaginários sob uma perspectiva particular com a intenção de orientar a percepção do outro. É, não melhorou muito, então vamos a um exemplo:
            — Diz-me com quem andas, que te direi quem és.
            Essa expressão extremamente popular está enraizada na base da nossa formação psicológica e pode ser traduzida em infinitas possibilidades e usos. Basta que pense em uma linguagem não formal, aquela que não usa palavras. Pense em, por exemplo, cantores de Rap. Eles vão ter uma determinada “atitude”, um determinado tipo de vestimenta, um determinado vocabulário, um determinado estilo musical, tudo isso define os adeptos desse grupo. O mesmo vale para surfistas, para empresários, para advogados, para políticos, para donas-de-casa, para qualquer classe social, geográfica, racial, etc.
            Nosso cérebro evoluiu para identificar e usar padrões classificatórios, era uma vantagem quando a velocidade que se identificava um predador ou um aliado significava viver ou morrer. Portanto sempre buscamos nos mesclar com os grupos que nos dão a sensação de segurança e absorvemos automaticamente padrões de comportamento desse grupo em oposição a todos os outros. Ou seja, as pessoas com quem me identifico, dizem muito sobre quem sou e onde quero chegar, ou “diz-me com quem andas que te direi quem és”.
            Mas o que isso tem a ver com a Narrativa? Basicamente tudo. Da mesma forma que identificamos padrões para sobreviver, criamos narrativas dentro desses padrões interpretativos para auxiliar nessa identificação de aliados e predadores. Essa tendência de seleção de fatos interpretados que permita a assimilação mais fácil dos padrões é que criam as narrativas. Associamos determinadas atitudes a determinados grupos e pressupomos que todos os integrantes assumam as mesmas possibilidades de ação em situações semelhantes, em outras palavras, criamos uma narrativa para cada conjunto de ações que determinam previamente uma tendência quase que irrevogável.
            Contra fatos não há argumentos, certo? Errado. A narrativa é feita de fatos escolhidos e alinhados dentro de um argumento que vai ser utilizado de forma a obter um resultado objetivado. A forma como escolho os fatos que vou ressaltar ou omitir, a sequência e velocidade que vou apresenta-los, são determinantes para construir o meu argumento de forma que crie uma tendência de assimilação dos mesmos como sendo a expressão da verdade que quero demonstrar. Portanto, fatos interpretados são na verdade argumentos disfarçados em verdades incontestáveis e totalmente convincentes de acordo com a habilidade utilizada na construção da narrativa.
            A forma mais utilizada para impedir que uma narrativa nos conduza onde quiser e nos faça agir sem refletir profundamente sobre os padrões é contrapor com uma narrativa igualmente consistente – com fatos interpretados sob um viés contraditório de forma a anular a assimilação automática da narrativa e obrigar uma reflexão sobre os fatos sem interpretação que são a base da verdade.
            Claro que em tempos em que a internet aumenta a facilidade com que os fatos são apresentados e versões sobre eles são divulgados aos borbotões isso não ocorre. Estamos vacinados das narrativas por quantidades homéricas de fatos apresentados por infinitas fontes e não vamos cair jamais em armadilhas argumentativas das narrativas criadas exclusivamente para direcionar pensamentos e ações, certo? Errado de novo. A internet tornou ainda mais fácil a construção de narrativas justamente pela inundação de dados interpretados que criam um caos interpretativo e a única solução para não enlouquecer com tantas versões da mesma sequência narrativa é justamente apoiar-se em padrões aglutinadores, a versão do grupo ao qual pertencemos.
            Quando observamos uma narrativa sendo elaborada, identificamos em primeiro lugar qual a fonte, em que grupo ela foi criada – e, na atualidade, as narrativas mais relevantes são criadas e desenvolvidas no meio de grupos amplamente estruturados e, na maioria das vezes, opositores – antes de nos posicionarmos contra ou a favor dela – sem precisar refletir muito sobre a narrativa, porque é preciso estar livre para a infinidade de outras narrativas que estão sendo produzidas a todo momento.
            Assim, a internet tem desenvolvido tipos de comportamento grupal que extrapolam os limites geográficos e as tendências comportamentais locais. Aprendemos constantemente a nos redefinir pelos grupos que possuem maior quantidade de características semelhantes às nossas. Ainda buscamos pertencer a grupos, mas atualmente os filtramos não pelo que podemos verificar em tempo real, mas pelas narrativas que esses grupos produzem, pelo comportamento geral e específico de seus indivíduos, que pressupomos serem livres em suas expressões, como nós mesmos.
            Cada vez mais nos identificamos com o que as pessoas dizem ser – mesmo que não sejam – do que com atitudes reais e concretas. Nos identificamos com as narrativas chamadas de “discursivas”, ou apenas Discursos, que permeiam cada grupo como uma regra consensada e não escrita ao qual nos filiamos ou nos posicionamos contrários. A generalização e superficialidade necessárias desses discursos é contida apenas pelas contribuições individuais daqueles que acabamos por definir como representantes do grupo todo, e quanto maior o nível de influência externa, maior o poder desse indivíduo na construção do Discurso do grupo ao qual nos filiamos ou contra o qual combatemos.
            Antes havia sempre um único macho alfa e uma fêmea alfa no grupo – os chamados líderes que poderiam ser contestados de tempos em tempos dentro das premissas do próprio grupo – que seriam seguidos incontestes em casos onde a sobrevivência grupal estivesse em jogo. Pertencer a um grupo quase que automaticamente o excluía de todos os outros por uma questão puramente física – a impossibilidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Atualmente as coisas são mais complexas e podemos fazer parte de diversos grupos que não sejam completamente antagônicos e seguir ou ser o macho/fêmea Alfa do momento, já que os papeis grupais são mais líquidos e se moldam com a situação e o envolvimento.
            O fato de que é possível construir a própria narrativa virtual com base apenas em um Discurso apresentado sem necessidade de provas concretas, torna ainda mais evidente que podemos ser uma coisa e nos apresentar de outra forma, ou seja, podemos pertencer a dois grupos antagônicos com discursos completamente opostos e ainda ser aceitos por ambos como sendo verdadeiros, até que se prove o contrário. A internet possibilitou a construção de narrativas que neguem os fatos reais com fatos imaginários bastando para isso manter o Discurso certo nos momentos em que é necessário.
            Por isso a confiabilidade individual e grupal se tornou mais essencial do que o próprio discurso propagado pela narrativa. Vou seguir um Discurso enquanto ele for fiel nos atos a si mesmo, e se em algum momento trair uma parte de si com atos ou palavras ao que anteriormente – e existem registros disso, facilmente acessíveis – ditos ou feitos, vou invalidar completamente o Discurso e o Grupo, desconsiderando inclusive todo o histórico anterior que comungava com minhas identificações, ainda que muitas dessas se mantenham. A integração ou desintegração do Grupo não está ainda mais vinculada ao Discurso, mas ao seu principal e atual fomentador.
            Portanto, na atualidade, não é preciso atacar diretamente todo o grupo, apenas o seu líder mais influente na questão mais sensível do Discurso, a credibilidade de sua narrativa. Com a mesma facilidade que se pode criar uma narrativa e aliciar diversos grupos dentro de um Discurso que os englobe, também pode-se destruir completamente o Discurso criando uma narrativa que ataque diretamente a credibilidade de seu principal produtor, o “rosto” do Discurso.
            Apesar de ser simples na apresentação dada, a complexidade e a periculosidade desse tipo de sociedade fundada em narrativas, vai além do que é normalmente divulgado, até porque isso poderia criar um caos maior ainda se não houver algo que o substitua de forma eficiente e rápida, e até o momento isso ainda não foi desenvolvido. Para o bem ou para o mal a guerra de Narrativas está cada vez mais forte no mundo atual e se desenvolvendo assustadoramente em complexidade. Não é por acaso que se possa observar uma radicalização em vários segmentos sociais, é apenas um efeito subliminar desse retorno a estratégia de “diga-me com quem andas que te direi quem és”.
            Quanto mais avançamos nas construções narrativas dos Discursos veiculados ao longe, mais nos afundamos no “regionalismo concreto” que nos define, porque podemos ao menos vivenciar os fatos – por mais aberrantes que nos pareçam, são reais o suficiente para que possamos comprovar sua existência concreta em contraposição a virtualidade confusa de infinidade de “versões” – e nos posicionar diante deles.
A crise de confiança que permeia os Discursos - cada vez mais elaborados e esquematizados para produzir efeitos significativos dentro de esquemas psicológicos pré-definidos – nos empurra na desconstrução da identidade grupal em direção ao individualismo concreto e a construção de uma máscara social que serve como escudo e que tem sua confiabilidade construída não por bases reais, mas de acordo com as necessidades de sobrevivência grupal.
Assim nos dividimos entre o concreto e “real” que vivenciamos e o “virtual” onde testamos a nossa narrativa pessoal antes de a apresentar no mundo real, ou apesar de não o fazer. No virtual podemos até ser outra persona que na verdade não somos, mas gostaríamos de ser e que se contrapõe ao que de fato somos enquanto agentes da realidade em que vivemos. Essa ruptura de identidades pode gerar sérias crises existenciais e até a perda de uma auto definição que leva a consequências imprevisíveis.
            Obviamente é possível combater essa guerra de Narrativas Discursivas de forma eficiente, mas para isso seria necessário a construção de um novo tipo de conhecimento que a cada dia – de forma intencional ou não – vem sendo minado em suas bases e desconsiderado em sua importância. Esse conhecimento tem suas raizes justamente na mesma área que cria as Narrativas, é a Análise Discursiva. Não é interessante que na mesma velocidade e intensidade que se criam Narrativas Globais que determinam os rumos de toda uma sociedade, cada vez mais se busca diminuir a importância da interpretação de textos, do estudo das construções narrativas, da análise discursiva nas obras clássicas?
            Isso ocorre porque quanto mais as pessoas conseguirem observar e separar os fatos das suas interpretações, mais complexas terão que ser as narrativas para conduzir os pensamentos e interpretações e mais sólidos e reais terão que ser os Discursos para que permaneçam com a credibilidade que lhes dá força. Em um tempo em que qualquer um pode escrever um livro e publicar conteúdo sem o mínimo conhecimento técnico necessário, banalizando algo essencial a construção da sociedade, cria-se o envenenamento da única ferramenta que pode construir uma sociedade forte e saudável onde os seus indivíduos podem se sentir seguros e se identificar no contexto.
            Não sou contrário que haja um aumento de publicações e uma diversidade de narrativas ficcionais, pelo contrário, isso permite uma ampliação de leitores de novos modelos narrativos, o que é fundamental é que haja a capacitação desses novos autores para que possam, eles mesmos, serem críticos em seu olhar acerca dos fatos e não passem apenas a reproduzir narrativas infundadas validando-as até que sejam desmontadas e desapareçam completamente. Reveja, se necessário, a parte em que comento sobre o risco de se destruir uma narrativa complexa apenas destruindo a credibilidade do “rosto” do discurso, que pode ser apenas um autor inexperiente que o reproduziu sem aprofundamento necessário. Não apenas a carreira desse novo autor, mas todo o discurso que apoiava em suas narrativas, passa a ser invalidado, apesar de poder conter coisas importantes e verdadeiras, junto com outras inverossímeis que serão apontadas e generalizadas na sua destruição.
            Antes queimava-se ou proibia-se livros para que não houvesse “contaminação” da Narrativa Oficial, atualmente com a internet isso seria impensável e impraticável, então faz-se o caminho oposto. Cria-se tantas narrativas superficiais ou complexas que possam ser desmontadas dentro de um plano estratégico que invalide todo um conjunto ao qual tenham se vinculado mantendo apenas a Narrativa Oficial que passa a ser a única confiável dentro da interpretação que se quer dar. Não é mais necessário – ou possível – destruir uma obra literária relevante, mas tornou-se fácil criar uma enxurrada de obras irrelevantes e banais de forma que aquela significativa se afogue no mar de possibilidades e apenas a que se mantem artificialmente pela força da divulgação constante é que sobrevive, e – como todos sabemos – quem detém a capacidade de divulgação, detém o poder de determinar a narrativa.
            Pelo que foi apresentado, pode-se afirmar que o mundo do futuro depende não de novos líderes que orientem seus grupos, já que estes podem ser desenvolvidos artificialmente, mas da capacidade individual de interpretar textos para identificar os verdadeiros líderes e as intencionalidades escondidas em seus discursos para poder se posicionar a favor ou contra. É na busca pelos fatos reais e na capacidade de interpreta-los por si mesmo que se consegue a sobrevivência na era dos discursos enganosos.

            E, então, qual é a sua Narrativa?

Danny Marks

domingo, 9 de outubro de 2016

Miséria Humana



Uma das perguntas mais recorrentes à um escritor é o motivo de escrever, normalmente a resposta muda de acordo com a sinceridade ou fase em que o escritor se encontra. Quanto mais estabelecido na carreira, menos sincero. As pessoas não querem respostas cruas, secas, desprovidas da “poética” que acreditam envolver todos os atos de um escritor. Como sou praticamente desconhecido no Brasil, e meus leitores estrangeiros ainda tem que se valer de tradutores para ter acesso ao meu registro - e o fazem com mais afinco do que os que mais facilidades possuem -, posso ser extremamente sincero.
Escrevo por necessidade visceral, aquela do mesmo tipo que pessoas ditas normais sentem, como fome, desejo de sexo, desejo de convivência, sono. Felizmente meus rendimentos não são provenientes dos livros que vendo, são poucos os que conseguem sobreviver decentemente no Brasil fazendo isso, a grande maioria nem consegue pagar os custos das publicações e só o fazem para manter o ego, pelo tempo que conseguirem, como um vício caro que se é obrigado a deixar e que traz pouco, porém profundo, prazer.
No meu caso não é por “amar o que faço” ou essas mentiras que os escritores famosos dizem para agradar a mídia e o público, sempre em busca de positivismo. Minha necessidade de escrever é para tentar preservar o resto de sanidade que penso ainda possuir, apesar de, através da escrita, mergulhar cada vez mais nas profundezas da alma humana e lhes iluminar os segredos mais escondidos.
          Quando se nasce amaldiçoado pelas Musas, aquelas vadias gregas que regem as artes e os artistas de todos os tipos, tem-se uma sensibilidade extremada que nenhum antialérgico dá conta. Gasta-se fortunas, que na maioria das vezes não se tem - quase sempre as vadias escolhem os artistas pobres para atormentar - em psicoativos legais ou não, ou ambos, ou acaba-se cedendo de alguma forma. Fazer o que as Musas mandam alivia a compulsão por algum tempo, apesar dos danos que isso causa na alma.
          Até aí tudo bem, pode-se até ter um prazer nessa relação promíscua - Musas só te procuram quando estão com vontade, mas ignoram as suas vontades sempre que podem - e nunca acusei a vida de ser justa, mas há momentos em que as coisas ficam estranhas.
          Já me acusaram diversas vezes de justificar demais, mas tente considerar o que foi dito como uma introdução para o fato que aconteceu há alguns dias, quando estava caminhando por uma calçada no centro da cidade vizinha, com um objetivo bem definido - só costumo sair de casa com objetivos definidos, uma alma velha, como dizem alguns poucos amigos sinceros, com um sorriso condescendente - e vejo um desses “moradores de rua”.
Há uma necessidade de eufemismo contemporâneo para suavizar a culpa da sociedade de permitir que pessoas sejam tratadas como lixo não recolhido pelas instituições governamentais, que na maioria das vezes são as principais produtoras deste “resíduo” social. Estava o mendigo – gosto de termos arcaicos que são mais expressivos e sinceros - comendo com as mãos de um marmitex que alguém deve ter lhe dado em ato de caridade.
          As atitudes de um cidadão comum são automáticas diante de um quadro deprimente, real e imediato. Normalmente se ignora facilmente, como um grafite ruim em uma parede que não lhe pertence, mas que é tão comum na sociedade que construímos como tijolos em uma parede. Fica difícil apenas quando alguém resolve piorar a situação de forma insana. No caso foi uma velha – para o inferno os eufemismos contemporâneos – que olha para o marmitex e diz em alto e escroto som como a anunciar a vinda do novo advento: “O rango está bom, heim? Só costela!!”
          Instantaneamente o encanto das sombras da ignorância institucionalizada se quebra e sou obrigado a reparar na refeição, por outro ato automático, e vejo uma quantidade absurda de arroz com farofa, acompanhada de alguns pedaços do que parecia ser costela que servia apenas para enfeitar a superfície indigesta e tentar dar algum sabor. O olhar de escritor, sempre atento aos detalhes que saltam a vista para serem atropelados pelos pensamentos, me apresenta a velha com seu vestuário bem alinhado - nada que a tornasse um expoente da sociedade -, tentativa de disfarçar a inveja e a raiva que destilava em cima de alguém claramente bem abaixo da escala da dignidade social que lhe é devida apenas por ser da mesma espécie dos transeuntes.
          O pobre homem – não é um eufemismo, mas uma expressão do sentimento emocional de pena projetado sobre outro indivíduo - nem respondeu, continuou comendo tranquilamente com a indiferença aprendida. A memória me traz a imagem animada de um abutre a quem foram lançadas injúrias por um narrador invisível e que, do alto de sua complacente calma responde apenas que “paus e pedras podem quebrar meu corpo, mas palavras não me atingem”.
Dou-me conta depois de décadas que as palavras só atingem os que estão acima do nível mínimo de dignidade humana para possuir um ego, todos os que estão abaixo só se preocupam com coisas mais contundentes a sua escassa integridade. Não sou dos virtuosos, praticando o desapego das coisas materiais e a bondade diante das desigualdades do mundo, não se esqueça que há sinceridade neste texto e normalmente ela não é gentil. Quando sou ferido de alguma forma, procuro fazer uso da minha melhor arma, palavras que brotam firmes e cortantes contra o agressor.
          Parei em frente a velhaca desfilante – para o inferno com a regra contra adjetivações - e muito educadamente soltei um sonoro “Senhora, vá para o Inferno!!”.
Ela ficou muda diante do vocativo, provavelmente, então desviei de sua trajetória homicida e continuei no sentido oposto, ignorando risos dos que sentiram satisfação em ver pronunciada em palavras o que gostariam de ter dito. Não é essa afinal a “função” de um escritor? Dar voz aos que não sabem expressar os pensamentos de forma adequada?
Deixei algumas moedas na caixa de donativos - para a cachaça, drogas ou refeição futura, não me importa, donativos são oportunidades, não dívidas que se oferece a outro - e segui em frente. Não há orgulho em obter uma vitória de Pirro, não há nobreza em fazer parte de um mundo onde situações assim existem com naturalidade e, naturalmente, são ignorados.
          Se a outra, ou os que estavam com ela, fez ou disse alguma coisa não sei. Nem sei se o mendigo agradeceu ou não às moedas. Que fique claro que não fiz nada por ele, mas por mim. Me senti agredido com a violência contra alguém que estava já por demais violentado pela sua situação, e instintivamente reagi no mesmo tom e forma. Só sombras conseguem atravessar o lodaçal sem se emporcalhar no trajeto, aos outros resta apenas tentar se livrar da sujeira de forma que não contamine mais ainda o ambiente, tentando ficar um pouco mais limpos que a média.
          Não tenho a pretensão de mudar os corações e mentes, tornar o mundo melhor ou coisa que o valha. Se fosse tão fácil, não existiriam tantos escritores a inventar mundos imaginários para aventuras edificantes, as Musas teriam que procurar outros para atormentar com suas inspirações. Creio que isso seria terrível, porque o inferno deixaria de existir e não poderíamos sequer ter uma catarse em mandar para lá quem nos revela quão baixo pode chegar o nível de humanidade que também possuímos.

          Fora isso, está tudo bem por aqui, obrigado.

Danny Marks

domingo, 2 de outubro de 2016

O Sábio e as Facas


          Em tempos difíceis todo mundo procura um Guru para poder se orientar e fugir dos problemas. Até mesmo os Gurus procuram Gurus para serem mais sábios ainda, não poderia ser diferente comigo.
          Um amigo me indicou um, que ele dizia ser um Sábio incomparável, e fui verificar essa preciosidade in loco (isso quer dizer “no local” não que esteja louco, como me afirmaram algumas vezes), afinal tenho um “pé” de administrador que adora esse tipo de coisa.
          Logo de cara já vi que o “incomparável” podia ter muitas interpretações possíveis, uma delas era que o cara tinha uma quantidade absurda de facas que ficava atirando contra um alvo. Mas quem está no inferno é para se queimar, ou algo do gênero, portanto parti para as perguntas que tempo é dinheiro e nesse caso, bem caro. Por falar nisso é estranho dizer que há um “custo do dinheiro” que ultrapassa o valor necessário para produzi-lo, mas não vamos divagar.
          “Sábio mestre, o que me dá de orientação para melhorar os meus caminhos? ” Uma faca foi atirada no centro do alvo sem que recebesse resposta. Melhor perguntar de outra forma, vai que não tinha entendido direito o meu questionamento, não que um guru não saiba interpretar algo tão simples, mas é que eles gostam de objetividade. “Grande Guru, que caminhos devo seguir para alcançar o meu objetivo pleno? ” Diversas facas foram atiradas ao mesmo tempo, e algumas até atingiram o centro do alvo.
          Caramba, estava pagando uma fortuna por essa entrevista e não estava levando nenhuma palavra? Essa coisa de Guru até que é um investimento bom de carreira, não dá trabalho nenhum, anotei para fazer um curso de como virar um guru em dez lições. Se mudo o cara ganha uma puta grana imagina eu que falo até pelos cotovelos, expressão usada para provar que tenho idade suficiente para ser um velho guru, isso faz toda a diferença. Mas estava disposto a arrancar alguma coisa pelo dinheiro gasto, além de lascas de madeira.
          Usei todo o meu conhecimento do assunto para poder formular a questão de forma que não admitisse qualquer dúvida ou interpretações furtivas, que pudessem se apresentar. Essas armadilhas e enganações de retórica usada a título de argumentação e que só servem para não dizer nada, e muito menos se comprometer com alguma coisa, não me atingem. Comigo tem que dizer as claras, assumir o risco de, depois, ser questionado nas afirmações e ter que sustentar os argumentos que apresentou ou se retratar.
          Depois de algum tempo consegui organizar as palavras de forma irredutível, clara e concisa, como tem que ser para se obter exatamente aquilo que se quer. Levei anos para descobrir como evitar dar respostas desejaveis nas entrelinhas da pergunta e assim impedir que charlatões usassem o meu desejo como fonte para sua resposta. Disparei de forma certeira.
          “Grande Mestre e Sábio Guru, demonstre para mim como alcançar o alvo de forma eficaz, sem que haja qualquer possibilidade de erro. ” Já estava até sorrindo por dentro, gargalhando na verdade. Comigo é assim! Tinha encurralado aquele cara de um jeito que não poderia fugir, estava ganha a batalha. Conhece o teu inimigo, dizia um outro guru em algum lugar que frequentei há tempos, não me lembro do resto, mas isso não importa agora.
          O homem apenas levantou com a última faca nas mãos e foi caminhando até o alvo, cravando-a firmemente no centro do alvo enquanto me olhava com uma intensidade que faria qualquer fã de filmes de terror ficar apaixonado, contanto que não estivesse dentro da tela, como eu. Depois passou a tirar uma a uma as que havia lançado antes, com uma calma sistemática que só os grandes mestres conseguem demonstrar diante dos mais complexos problemas.
          Tenho que reconhecer, o cara era bom mesmo. Fui embora sem dar as costas para o Sábio da Facas, agora reconhecido em sua extrema potência de ser, já me sentindo iluminado pela experiência transcendental que me encheu de humilde temor diante de tão agudas assertivas, que preferia manter a vista e não incrustadas no meu ser. Não há nada como provas materiais para embasar argumentações e criar fortes convicções de que há momentos em que a vitória não é certa, mas a sobrevivência é necessária. Nem preciso ser especialista em análise de discurso para saber disso, não é mesmo?
          Quanto ao meu ex amigo, estou só esperando um bom momento para demonstrar o quanto aprendi com a sua indicação e apresenta-lo a maravilhosa lei do retorno das nossas ações resgatando com dividendos a sua contribuição para a minha causa na busca do aperfeiçoamento constante. De que adianta adquirir um autoconhecimento se não para usá-lo com os outros. Acho que realmente tenho um grande futuro nesse negócio de guru, até já encomendei as melhores facas do mercado.


Danny Marks

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Século XXI


Quem tem mais de cinquenta, como eu, provavelmente deve estar com a mesma decepção em relação a esse futuro que nos alcançou depois de longas batalhas para o realizar. Porque o futuro não chega sem muita luta, fica resistindo ferrenhamente e precisa ser arrancado à fórceps dos sonhos para finalmente gritar, para nossa alegria, quando nasce cheio das melhores expectativas.
Os primeiros momentos são de todos, um pedaço de cada um. Aquele olhar de esperança é dos avós, não notou? E aquelas ideias na cabeça, tão ralinhas, uma pendendo para um lado, outra para o outro, não é a cara do pai? Mas a força com que reclamou ao nascer, os berros que todos ouviram, isso não há dúvidas que é da mãe. Há sempre um vínculo com o passado, que lhe serve de base, em cada novo século que nasce.
Talvez por isso todo século quando nasce é feio. Enrugado de estar mergulhado em ideais por tanto tempo, só curtindo a vida nos sonhos que nem precisam se realizar, chamam-se apenas de futuro. Ninguém espera de fato que as expectativas se realizem, são mais para se ter algo em que pensar quando se namora, juntinho de conchinha, agarradinhos embaixo de um cobertor quentinho enquanto o frio fica do lado de fora, entre um amor e outro, até que haja um sexo gostoso que faz esquecer de tudo.
Talvez tenha sido esse o problema, o sexo. Desde que liberaram geral no século passado, com a queima dos sutiãs e o amor livre regado a muito rock´n´roll e rebeldia, as coisas ficaram mais soltas. Depois veio a ressaca, os peitos cansados da gravidade voltando para sutiãs de bojo a fim de parecerem mais firmes, volumosos, as ressacas homéricas que levaram a batidas ferozes, distorções, desconexões, em rituais sexuais estilizados. A rebeldia ainda tentou se manter firme, rebelde até mesmo na decadência. Importante era se revoltar contra qualquer coisa, e haviam tantas.
Ficou tudo tão disperso que os laços ficaram frágeis, esgarçados como lençóis amarrotados depois uma noite de amor intenso, a louça do café da manhã se juntando com a do jantar e esperando que alguém tivesse a dignidade de lavar os pratos antes dessa pirâmide desabar sobre a própria base. O homem foi para a lua a pretexto de trazer o universo para a amante, mas esqueceu o que tinha ido fazer lá, voltou de pedras nas mãos. Pedras que substituíram flores, muros quebrados que se tornaram mais pedras, e quando haviam tantas pedras no caminho, a poesia perdeu espaço e ficou concreta, armada. Começaram a atirar nos outros restos do sonho que acabou.
A esperança estava logo ali depois da curva, na virada do século que prometia ganhar novamente espaço, ciberespaço, que juntaria lugares mais distantes que o olhar diferente. Criar pontes e achar novos caminhos que nem se sabia existir. O amor estava no ar e o sexo nas veias eletrônicas de uma nova realidade, mais forte, bondosa para com os desprotegidos de além, na esperança que outros cuidassem dos daqui. Resgatar a natureza depredada, compartilhar riscos e ideias, juntando grupos de semelhantes em uma aldeia global que faria a roda do progresso girar e trazer soluções para todas as doenças do corpo e do caráter. Faríamos contato com outras inteligências de outros mundos que nos abraçariam em irmandade para salvar o planeta e a nós mesmos, no futuro.
Quando o século XXI nasceu, a contragosto, veio marrento em sua arrogância imatura, fruto de lar desfeito em valores penhorados. Criança birrenta, egoísta, que constrói castelos com pedras atiradas para olhar de cima das muralhas com ar reprovador das diferenças, na certeza individual de que é rei e o universo deve se curvar à sua vontade e sua inquestionável expertise superior. O olhar obeso acima do outro, a crítica chovendo acida em solo infértil, de rios contaminados e mar alagado.
Contatos com outras civilizações? Só se for para sexo voraz, descartável na saciedade individual, a posse sem retorno, que sinta o privilégio de me ter e esqueça essa coisa de ter sua vontade. Deixa de frescura que a vida é dura e vai penetrar onde houver espaços, caminhos fálicos, gente de armadura.
Solitário para não se ferir, cresce gigante o medo do desconhecido, espelho escurecido, revelado em fotos de nudes que deixa vazar nas redes, tentativa de ser capturado para não fazer tantas escolhas difíceis.
O que aconteceu de errado? Entramos com velocidade excessiva na curva e derrapamos em direção ao abismo? Ou apenas descobrimos que o mundo não é do jeito que pensávamos, com a nossa cara? Nosso jeito pode não ser o melhor, mas para que aprender se já acostumamos a ser? É preciso fazer a criança crescer de forma correta, perceber os erros dos pais e dos avós e não ter que os repetir, velhas lições só se forem estruturais. Não reinventar a roda, aprender a usa-la, descobrir coisas novas sem medo de ser velhos demais para aceita-las e nos permitir renovar.
É preciso olhar para o passado, não em busca de velhas respostas para os mesmos problemas que não foram solucionados. Olhar para frente e evitar saudosismos inúteis, reinventados pela lembrança adocicada da memória, buscando a sabedoria que nos fez chegar aqui. Tentar criar novas sabedorias que conduzam ao próximo século, sem gosto amargo de decepção e olhar crítico de quem já viu coisas demais, porém não reconhece as mesmas perguntas, os mesmos erros que insistem em se manter firmes, enquanto não os resolva definitivamente.
Então poderemos verdadeiramente conquistar o espaço, abraçar novas civilizações, que descobrimos não estarem no mundo da lua onde as fomos buscar, mas aqui ao lado, na casa do vizinho que, inadvertidamente, nos deixou entrar e que agora não sabe mais o que fazer com a nossa presença constante e vigilante. Descobrimos ter uma coisa em comum com esse vizinho, o medo. Mas podemos descobrir que há outras, tanto melhores, em comum, como o desejo de ser feliz, de ter o seu espaço respeitado, de ter oportunidade de fazer escolhas diferentes e descobrir onde nos levam e que podemos aprender, ou nos decepcionar, com o que for encontrado. É preciso que isso seja feito, ou as próximas gerações não terão o privilégio que tivemos de ultrapassar limites do desconhecido, só para descobrir um espelho que nos revela como somos de fato, não como imaginamos, e que nos cobra a parte da responsabilidade de lidar com um sonho, que acabou virando a realidade em que vivemos. E que a poesia tenha esperança em nós.

Danny Marks